Abril de 2024. Contam-se seis meses de bombardeamentos contínuos a Gaza. Habitações, escolas, universidades, hospitais, mesquitas, edifícios culturais e históricos, campos agrícolas, sistemas de abastecimento alimentar e de serviços de água e energia foram obliterados por milhares de toneladas de explosivos lançados pelas forças militares de Israel, alguns dos quais capazes de matar ou ferir pessoas a mais de mil metros de distância.
Quando a destruição não cai do céu, é levada a cabo por demolições, a partir da terra. O norte de Gaza foi terraplanado e orgulhosamente decorado com bandeiras israelitas. Através do recurso a uma política de punição coletiva, de brutal desproporcionalidade, em resposta a um sangrento ataque do braço armado do Hamas a civis israelitas, do qual resultaram reféns, o governo de Netanyahu validou a cartilha terrorista de que é legítimo matar civis e dizimar património civil e público em resposta a um grupo de indivíduos.
Israel, um país com armas nucleares, aviões caça da mais alta tecnologia, armas modernas e tecnologia de ponta, financiado em milhares de milhões de dólares pelos Estados Unidos da América, utiliza o vasto arsenal militar para dizimar habitações, atacar hospitais, dezenas de escolas e centros de refugiados, tanques de água e cortar acesso a água e alimentos, sob a desculpa de estar a destruir alvos do Hamas escondidos entre a comunidade civil, indiferente a que os ataques eliminem os próprios reféns. Em direto, assistiu-se à normalização dos crimes de guerra, de massacres a crianças, jovens e adultos inocentes, e a uma limpeza étnica envernizada com o apoio de líderes ocidentais e comunicação social, aos quais nunca foi novidade o “olhar para o lado” durante décadas de apartheid e violência de Israel para com o povo palestiniano.
“Cemitério de crianças”
Nos primeiros três meses de bombardeamentos a Gaza, as forças israelitas mataram mais de 20 mil seres humanos, incluindo mais de dez mil crianças, e mais de dez mil feridos. Só no primeiro mês, os ataques israelitas tiraram a vida a quatro mil crianças, números que levaram o diretor da ONU, António Guterres, a descrever Gaza como um cemitério de crianças e que aumentaram exponencialmente com a cumplicidade de todos os líderes ocidentais. Mais de 1,8 milhões de pessoas, cerca de 85 por cento dos habitantes do território, foram obrigados a abandonar as suas casas ou os destroços que restaram dos bombardeamentos israelitas.
Atualmente, em finais de Abril de 2023, contabilizam-se pelo menos mais de 34 mil mortos, dos quais mais de 14 mil crianças, e mais de 76 mil feridos. Famílias inteiras foram dizimadas, médicos, professores, funcionários das Nações Unidas e mais de 90 jornalistas e respetivas famílias, chacinados pelas forças israelitas, muitos dos quais em áreas que Israel tinha designado como seguras.
Funcionários de organizações humanitárias – 180 funcionários da ONU, e centenas de outras entidades, bem como ambulâncias e hospitais, não escaparam aos violentos ataques que causaram milhares de feridos, com traumas que ficarão para o resto da vida. Centenas de crianças com danos fatais em braços ou pernas tiveram que ser mutiladas a sangue frio, em intervenções médicas sem anestesia, na sequência da destruição de hospitais pelas forças israelitas, para além do bloqueio ao acesso de material hospitalar a Gaza. As imagens de destruição do hospital Shifa revelam um dos muitos crimes de guerra, segundo normas da convenção de Genebra, tendo sido apenas um dos muitos hospitais que Israel destruiu, causando a morte a pacientes e médicos. A descoberta de valas comuns junto ao hospital não passou de mais uma notícia perdida entre as centenas de atrocidades que têm desfilado diariamente nas redes sociais.
Depois de uma das missões das Nações Unidas a 10 hospitais de Gaza, o representante do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) no Estado da Palestina, Dominic Allen, relatou ter visto, entre outras atrocidades, “equipamento médico propositadamente partido“.
A somar a tudo isto, “as crianças em Gaza estão a morrer de complicações relacionadas com doenças e fome desde que o governo israelita começou a usar a fome como arma de guerra, um crime de guerra”, acusou também, no início de Abril, a organização Human Rights Watch.
Israel respondeu a um ataque terrorista com atos igualmente terroristas e de total desproporcionalidade, com a agravante de serem perpetrados por um Estado. Valida atos terroristas ao demonstrar, pelas próprias ações, que afinal é legítimo matar civis e crianças, em resposta ao ato que condena.
A retórica da comunicação social e dos líderes ocidentais assentou, desde o primeiro dia, no direito de Israel – um dos países militarmente mais bem equipados do mundo – de avançar com a destruição massiva de pessoas e infraestruturas de um povo ao qual impõe há década um sistema de apartheid e de violenta opressão e humilhação.
Os líderes ocidentais, que copiosamente apregoam os valores de direitos humanos e democracia, e que veementemente condenaram, desde o primeiro momento, a alta voz, a morte de civis na guerra da Ucrânia (com exceção das vítimas na região de Donbass) como crimes de guerra, nada mais têm sido do que cúmplices, desde o início das atrocidades israelitas, a par da maioria da imprensa ocidental. Nos primeiros meses da agressão israelita, a maioria dos media ocidentais manipulou e enviesou despudoradamente a informação, muitas vezes decalcando as notas de imprensa israelita, onde é constante o debitar de informações nunca comprovadas e a desumanização do povo palestiniano.
Nos noticiários, principalmente televisivos, qualquer breve notícia sobre as vítimas civis anexava, em loop, as expressões “Hamas”, “terroristas” e “islamistas”, associando os palestinianos ao grupo armado, numa evidente manobra de justificação dos bombardeamentos em massa, sem qualquer menção ao massacre contínuo e sistemático a que o povo palestiniano é submetido, desde há décadas, pelas forças israelitas. Ainda hoje, perante o cenário de dezenas de milhares de mortes, imposição de fome e destruição massiva do património de um povo, se assiste em horário nobre televisivo à justificação da barbárie com o argumento de que elementos do Hamas estão por toda a parte e, portanto, a razia é legítima.
A abordagem geral transmitida ao público perpetuou e deu enfoque, durante meses, às declarações do governo israelita, amenizando as atrocidades cometidas em Gaza, e os comentadores e analistas seguiram a mesma linha. Gerações palestinianas inteiras foram dizimadas, bem como milhares de casas e infraestruturas vitais, e a maioria dos que gritavam “crimes de guerra” e “Putin para o TPI” foram os que nos primeiros meses da brutalidade israelita se contorcionaram em justificações para o desfilar de atrocidades infligidas a dezenas de milhares civis palestinianos. No início de novembro de 2023, contavam-se mais mortos em Gaza, em apenas quatro semanas de bombardeamentos israelitas, do que em quase dois anos de guerra na Ucrânia, mas nada demoveu os justificadores dos massacres diários.
Enquanto que na guerra da Ucrânia a morte uma criança era classificada como crime de guerra, em Gaza foram apresentadas como “danos colaterais” justificados. A morte de mais de 13 mil crianças palestinianas em ataques israelitas gerou, e ainda gera, indiferença e é maquiavelicamente desvirtuada para justificar a barbárie. As muitas valas comuns encontradas em Gaza passam indiferentes aos olhos daqueles que gritaram com o massacre de Bucha, na Ucrânia.
Mas ainda assim, os apologistas dos crimes israelitas que nunca criticam o tratamento dado por Israel aos palestinianos, continuam a ser a corrente dominante nos tempos de antena dos canais televisivos, bem como o destaque dado ao Hamas, apesar das dezenas de milhares de vítimas mortais dos ataques israelitas.
“Os meios de comunicação ocidentais desempenharam um papel fundamental no assassínio de 21 membros da minha família, incluindo os meus pais, irmãos, sobrinhas e sobrinhos. Sim, Israel executou o ataque e os EUA forneceram o armamento, mas os media ocidentais deram cobertura. Considero responsáveis todos os propagandistas de Israel e todos os jornalistas ocidentais que repetiram a narrativa do ‘direito de autodefesa de Israel’ contra a população civil de Gaza, incluindo crianças e mulheres. A era da diplomacia já passou. É altura de chamar estes terroristas pelo seu verdadeiro nome: facilitadores de genocídio. Recuso-me a continuar a tolerar a propaganda israelita. Recuso-me a ser intimidado por mais tempo, e ninguém mais o deveria fazer”, afirmou Ahmed Alnaouq, um jornalista palestiniano que viu 21 membros da sua família serem chacinados pelo exército israelita.
Também nos primeiros meses, as manifestações de cidadãos de vários países contra a barbárie que desfilava diariamente pelas redes sociais, chegaram a ser apelidadas, por jornalistas – sim, por jornalistas – de “pró-terroristas”.
A destruição em massa de Gaza, embora bem anunciada pelos seus autores, foi constantemente justificada por políticos, analistas e profissionais da informação. O Presidente dos Estados Unidos, fiel aliado de Israel, tentou desvalorizar, desde o início, o número bem documentado de mortes palestinianas, os políticos europeus vociferavam o direito de Israel de se defender, obliterando um povo, não mencionando todo o historial de décadas de opressão e agressão israelita à população palestiniana. Os órgãos de informação usaram, durante meses, e muitos ainda usam, a voz passiva ao relatarem as atrocidades perpetradas em Gaza. Aceitaram, sem qualquer massa crítica, a informação propagada por Israel, muita da qual nunca teve qualquer validação a nível de provas.
O branqueamento da chacina perpetrada por Israel atingiu proporções tais que várias entidades se manifestaram, tendo sido uma das mais recentes o Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio que exortou aos meios de comunicação ocidentais a abandonarem o enquadramento que protege Israel da responsabilidade pelos crimes contra o povo da Palestina. “Estamos preocupados com o facto de os meios de comunicação ocidentais estarem a tornar-se cúmplices da normalização da atrocidade em massa em todo o mundo”, publicou a entidade, em comunicado. Encontra a tradução do comunicado aqui.
Na prossecução da política de silenciamento, os poucos que, desde o início, ousaram criticar publicamente a morte em massa de civis, foram ferozmente criticados e apelidados de apoiantes de terroristas. Uma das primeiras vítimas da campanha foi Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit, que se demitiu após pressão, depois de comentar na rede social X que “crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando cometidos por aliados”, referindo-se à brutal resposta militar de Israel aos ataques do Hamas.
Muitos casos se seguiram, para além de despedimentos, cancelamentos e proibições, dos mais famosos ao cidadão mais comum, ao qual não escapou o famoso artista dissidente chinês, Ai Ai Weiwei que viu várias exposições serem canceladas, nomeadamente na Galeria Lisson, em Londres, depois de ter postado comentários nas redes sociais em solidariedade com o povo palestiniano, e apenas uma das centenas de casos de pessoas que foram castigados por ousar criticar publicamente o massacre e destruição em Gaza. “Nunca vivi um período tão arrepiante. As pessoas estão a ser colocadas na lista negra e a perder os empregos”, afirmou o fotógrafo norte-americano Nan Goldin, que também é judeu e que sofreu repercussões por assinar uma carta aberta contra os ataques desmedidos a Gaza.
Hamas e os reféns
As atrocidades em contínuo que perduram há mais de seis meses, surgem como resposta ao ataque do braço armado do grupo palestiniano Hamas a cidadãos israelitas, a 7 de outubro, que causou a morte a 1.170 pessoas, a maioria civis, tendo raptado 250 reféns, dos quais Israel estima que 129 se mantenham em Gaza, incluindo 34 presumivelmente mortos. Em comunicado, um dos argumentos apresentados para justificar as atrocidades, entre a contínua segregação e opressão ao povo palestiniano, foi o frequente assédio das forças israelitas à Mesquita Al-Aqsa, que no último ano tem sido notícia pelas constantes agressões das forças israelitas aos muçulmanos que frequentam o templo.
Através da intervenção e mediação de vários Estados mediadores, e devido à crescente pressão pública, decorreram posteriormente trocas de reféns e prisioneiros, permanecendo ainda cerca de 132 reféns israelitas em Gaza. Pela primeira entrega de reféns, Israel libertou palestinianos prisioneiros, alguns dos quais mulheres e crianças, que muitos palestinianos consideram serem também reféns de Israel devido às configurações das detenções, mantidas sem acusações de crime ou provas formais. Imagens da entrega de reféns israelitas por parte do grupo armado do Hamas que inundaram as redes sociais geraram polémica por mostrarem reféns a despedir-se dos militantes do Hamas com abraços e sorrisos. Ainda em Outubro foi o gesto de aperto de mão de uma idosa israelita ao seu captor que causou celeuma.
Também motivo de choque foi o fuzilamento, por parte de forças israelitas, de três reféns que escaparam aos captores, que se apresentavam sem camisola e com bandeiras brancas quando foram friamente executados pelas forças israelitas. Uma imagem que não surpreendeu os muitos que assistiram a vídeos de palestinianos, com bandeiras brancas, a serem fuzilados por snipers israelitas, embora desta vez a execução sumária tenha decorrido aparentemente por engano.
As negociações para a libertação total de reféns nunca chegaram a bom porto, deixando os familiares dos reféns frustrados, alguns dos quais acusando Netanyahu de não dar prioridade aos reféns, mas sim de aproveitar a situação para destruir Gaza e matar milhares de crianças e adultos palestinianos, o que muitos membros do governo israelita não se coibiram de anunciar.
Numa das mais recentes recuperações de corpos de reféns por parte do exército israelita, no início de Abril, a irmã do refém morto, Elad Katzir, responsabilizou as autoridades israelitas pela morte do irmão, afirmando que este teria regressado vivo se as autoridades tivessem aceite o acordo de tréguas. “A nossa liderança é cobarde e movida por considerações políticas, razão pela qual este acordo ainda não aconteceu”, escreveu Carmit Palty Katzir, na sua página do Facebook, opinião partilhada por muitos críticos de Netanyahu que afirmam que o ataque do Hamas era a desculpa que precisava para arrasar Gaza. As declarações de membros do governo israelita, políticos e analistas a repetidamente apelar para que Gaza fosse eliminada, arrasada, esmagada, repetindo várias vezes não existirem inocentes em Gaza e que “as crianças de Gaza trouxeram isso para si mesmas” eram constantes, justificando a razia de Gaza em detrimento da recuperação dos reféns. “Todos merecem morrer”, afirmaram membros do governo israelita, amplamente secundados por comentadores nos media israelitas.
África do Sul e a acusação de Genocídio As evidências de risco de genocídio dos habitantes de Gaza eram impossíveis de ignorar, por muito que os líderes e a imprensa ocidental trabalhasse nesse sentido, e a África do Sul avançou com a acusação, junto do Tribunal Internacional de Justiça. Na lista apresentada pelos advogados sul-africanos contava, para além da acusação de genocídio, a acusação de inflição danos físicos ou psicológicos graves, contabilizando-se, na altura, mais de 50.000 palestinos feridos e de Israel submeter intencionalmente indivíduos a condições de vida destrutivas, com bloqueio de alimentos e recursos essenciais, e a imposição de medidas para prevenir nascimentos, onde não faltam exemplos de destruição de hospitais e ataque a profissionais de saúde.
Numa decisão preliminar de 26 de janeiro, ignorada ou levemente abordada por muitos media ocidentais, o Tribunal determinou que determinadas ações israelitas em Gaza constituem plausivelmente violações da Convenção das Nações Unidas sobre o Genocídio e ordenou um conjunto abrangente de medidas que Israel deveria tomar para limitar os danos aos civis palestinianos e que Israel deveria por todos os meios evitar um genocídio.
Mas Israel mostrou, mais uma vez, que se encontra acima de qualquer decisão internacional e adotou uma estratégia de diversão de atenção, avançando com uma campanha de difamação da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente) a entidade que assegurava assistência humanitária à população, acusando 12 funcionários (dos mais de 10 mil que atuam em Gaza) da organização de terem ligações ao Hamas. A acusação, difundida sem provas, foi suficiente para que muitos governos, não obstante estarem a par da grave situação de fome em Gaza, retirassem o apoio, sem que lhes fosse apresentada qualquer prova do que Israel afirmava. Passados vários meses de fome instalada na região, e sem provas de Israel das acusações que fez, alguns dos países voltaram atrás na decisão, mas os níveis de privação de alimentos e tragédia que aumentaram com a medida cúmplice dos Estados ocidentais são irreversíveis.
Fome deliberada em pleno século 21
Em pleno século 21, um governo causou a fome a seres humanos, de forma deliberada e intencional. Pessoas morreram à fome porque foi bloqueado o acesso de alimentos, com a conivência dos líderes ocidentais. Mas não foi suficiente destruir padarias e estruturas de distribuição alimentar, e o governo israelita elevou o grau de perversidade ao impedir o acesso de alimentos à população de Gaza, tendo provocado a morte, por desnutrição, a dezenas de crianças, contando-se 15 crianças num único hospital, Kamal Adwan, e existindo milhares em situação grave.
Em meados de Dezembro de 2023, a Human Rights Watch (HRW) já denunciava o problema. “Há mais de dois meses que Israel tem vindo a privar a população de Gaza de alimentos e água, uma política incentivada ou apoiada por altos funcionários israelitas e que reflete a intenção de matar civis à fome como método de guerra”, alertou o diretor da HRW para Israel e Palestina. Em início de Abril deste ano, a Human Rights Watch acusava, num comunicado, que “as crianças em Gaza estão a morrer de complicações relacionadas com a fome desde que o governo israelita começou a usar a fome como arma de guerra, um crime de guerra”.
Foram precisos cinco meses de violência sobre a população de Gaza para que um dos principais diplomatas da União Europeia, Josep Borrell, vice-presidente da Comissão Europeia, acusasse Israel de usar “a fome como arma de guerra”. A fome “não foi um desastre natural”, mas causada por Israel “impedindo a entrada de apoio humanitário em Gaza”. Centenas de camiões que se encontram na fronteira e foram impedidos de entrar em Gaza por Israel, afirmou, descrevendo uma realidade que já era evidente desde Outubro do ano passado.
A 2 de Abril, o Banco Mundial publicou, num relatório que “mais de metade da população de Gaza se encontra à beira da fome e toda a população está a sofrer de insegurança alimentar aguda e de subnutrição”. Em Março, também os peritos das Nações Unidas acusaram Israel de “matar intencionalmente à fome o povo palestiniano” em Gaza. “Israel tem de pôr termo à sua campanha de fome e de ataque a civis”, afirmaram vários peritos da ONU, em comunicado.
Mas foi no início de Abril, quando as forças israelitas atacaram um veículo com sete funcionários da organização World Central Kitchen, que a indignação dos líderes ocidentais subiu o volume, embora não o suficiente. A morte dos sete humanitários “não foi um acidente isolado, reflete um padrão de ataques contra civis, infraestruturas civis e ajuda humanitária, que resultou na destruição quase total do sistema de saúde, criou fome no norte que provavelmente se estenderá ao resto de Gaza numa questão de semanas e matou ou feriu mais de cem mil pessoas, na sua maioria mulheres e crianças”, afirmou Melanie Ward, CEO da Medical Aid for Palestinians, uma associação que já contava com vítimas dos ataques israelitas entre os seus membros.
“O facto de se permitir que estes ataques a trabalhadores humanitários aconteçam é uma escolha política. Israel não enfrenta qualquer custo político. Em vez disso, os seus aliados permitem esta brutalidade com impunidade e fornecem ainda mais armas que mutilam e matam civis indiscriminadamente”, afirmou recentemente o secretário geral da associação Médicos Sem Fronteiras, Christopher Lockyear.
A cumplicidade da comunicação social e a dualidade de critérios
O que se observou durante mais de cinco meses nos media portugueses foi tenebroso. Nas televisões portuguesas, destacavam-se os especialistas com perspetivas enviesadas, num constante minimizar das atrocidades cometidas por Israel, apresentado factos como verdadeiros – que mais tarde se apresentaram como falsos ou infundamentados – num autêntico replicar de notas de imprensa do governo israelita. Ainda hoje, nos títulos dos jornais, os palestinianos morrem, misteriosamente, sem indicação dos assassinos. As destruições em massa de Gaza são descritas como “operações de limpeza” ou de Israel a “assumir o controlo”. O rigor é posto de parte, num atentado ao jornalismo.
Nos primeiros meses de cobertura, cada breve menção às vítimas palestinianas, que aumentavam a um ritmo incomportável, juntavam-se os chavões “Hamas”, “terroristas”, “islamitas”, associando os civis ao “terrorismo”, numa forma de legitimar os crimes e atrocidades que desfilavam, em catadupa, pelas redes sociais.
Nos primeiros meses de cobertura, cada breve menção às vítimas palestinianas, que aumentavam a um ritmo incomportável, juntavam-se os chavões “Hamas”, “terroristas”, “islamitas”, associando os civis ao “terrorismo”, numa forma de legitimar os crimes e atrocidades que desfilavam, em catadupa, pelas redes sociais. Muitas das imagens e informação que chegavam às redes sociais deveram-se aos jornalistas palestinianos, os únicos no terreno, uma vez que os jornalistas ocidentais foram impedidos de entrar livremente em Gaza. Os jornalistas no terreno foram alvo de ataques constantes, contando-se em mais de 90 mortos, e os que sobreviveram a ataques viram famílias completas dizimadas nos ataques.
Desde o início que Israel impede os jornalistas ocidentais de entrar em Gaza, e a maioria dos jornalistas ocidentais parece conviver bem com essa restrição. Ainda mais grave, os repórteres ocidentais que se encontram em Israel para noticiar os acontecimentos de Gaza são controlados pelas forças israelitas. Fareed Zakaria, jornalista da CNN, afirmava que todo o material e filmagem tinha que passar pelo crivo do exército israelita antes de ser publicado.
Nem o facto de mais de 103 jornalistas palestinianos terem sido mortos, muitos dos quais claramente identificados como jornalistas, levantou a bandeira da ética e do compromisso com a verdade à grande maioria da cobertura noticiosa dos ataques a Gaza.
Na televisão portuguesa, um jornalista classificou membros da comunidade judaica que se manifestavam contra a chacina de palestinianos como “apoiantes dos terroristas”. Por toda a Europa, os poucos que tiveram a coragem de se manifestar foram ostracizados ou despedidos, num desfile de centenas de casos denunciados nas redes sociais.
A cobertura noticiosa do Tribunal Internacional de Justiça, perante a acusação de genocídio, passou entre os intervalos da chuva no panorama noticioso televisivo, e logo após a ser decidido que Israel deveria garantir que genocídio não fosse cometido, Israel puxou de uma cartada que mais tarde se revelou não ter fundamento e que, uma vez mais, contou com o apoio dos governos ocidentais, tendo sido comunicada como facto pela comunicação social, sem a existência de qualquer prova. A Associação judaica Jewish Voice for Peace afirmou que “o Estado israelita tem um longo historial de fazer falsas alegações para desviar a atenção dos meios de comunicação social dos seus crimes contra os palestinianos.”
Por cá, vimos jornalistas afirmarem, despudoradamente, em horário nobre televisivo, que a UNRWA tinha ligações com o HAMAS, nem tendo o discernimento de, pelo menos, se resumir à propaganda Israelita que acusavam 12 elementos de uma organização que conta com mais de 12 mil funcionários em Gaza – e não a organização – acusação que nunca conseguiram provar. A fome exacerbou-se e criou-se uma manobra de diversão para disfarçar a ignomínia.
Uma das situações mais repugnantes publicadas na imprensa ocidental foi o cartoon publicado pelo jornal francês Libération que escarneceu com a situação de fome em Gaza. O cartoon, de Corinne Rey, retrata um homem palestino faminto perseguindo ratos e baratas no meio de escombros e edifícios destruídos. Uma mulher no desenho bate-lhe na mão e repreende-o, afirmando: “Não antes do pôr do sol”, numa alusão ao Ramadão.
Muitos jornalistas que não se coibiram de adjetivar Putin de demónio, justificaram e menosprezaram a barbárie em Gaza, algo que ficará registado na história do jornalismo.
Limpeza étnica em direto
O cenário dantesco de desumanidade a que se assiste desde Outubro de 2023, numa punição coletiva de um povo que é continuamente humilhado e oprimido desde a Nakba – a Catástrofe – a expulsão, com massacres, do povo palestiniano das suas casas e terrenos, há 75 anos, e que diariamente é confrontado com abusos e apartheid documentado, sem direito a resistência, acentua-se com a total impunidade do seu perpetrador.
Vídeos de soldados das forças militares israelitas a debochar da destruição infligida inundam as redes sociais. São centenas as imagens de soldados a exibir ou vestidos com a lingerie de mulheres palestinianas que encontravam nos destroços das casas que destruíram, a aplaudir a implosão de escolas, a rejubilar em mesas abundantes, rindo da fome dos palestinianos. Mesmo depois da determinação do Tribunal Internacional de Justiça, continuaram a publicar os seus vídeos de deboche e desumanização dos palestinianos onde celebram as atrocidades que cometem, com a segurança de quem se sabe totalmente impune.
Mas se Israel perpetua os crimes e a agressão a Gaza, como já fez, entre muitas outras vezes, em 2008, 2012 e 2014, é porque é validada pelos líderes norte-americanos e europeus. Basta ver a posição de apoio da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que em Outubro do ano passado, após o ataque do Hamas, se deslocou a Israel para dar o aval à barbárie e crimes de guerra que se seguiram, justificando o massacre de civis, e que passados meses de destruição massiva nunca mencionou a possibilidade de alguma medida de sanção ou condenação a Israel.
Os Estados Unidos vetaram por três vezes, resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) que pediam o cessar-fogo no massacre israelita na Faixa de Gaza. Foi preciso esperar até março, mais de 5 meses depois de carnificina, para a obtenção de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que apelasse a um cessar-fogo, ainda assim com o voto de abstenção dos Estados Unidos da América.
Assistindo a fortes protestos de cidadãos norte-americanos, e numa tentativa de lavar as mãos do sangue, Biden mostrou-se mais duro com Netanyahu e afirmou a necessidade de apoio humanitário, tendo sido necessários mais de cinco meses de atrocidade para o fazer. Contudo, são os atos que contam, e Biden continuou a apoiar ativamente a morte massiva de civis em Gaza, ao vender armas avaliadas em dezenas dezenas de milhões de dólares, em linha com o apoio militar de milhares de milhões de dólares de décadas.
Quando a barbárie de Israel se encontravam no auge, o Governo norte-americano aprovou, pela segunda vez, e sem passar pelo Congresso, uma venda de armas a Israel, de mais de 147 milhões de dólares.
A cartada do antisemitismo
Quem acompanha a questão Palestiniana bem sabe que muitos dos que ousam criticar publicamente um sistema que assenta no apartheid, e na humilhação e violência constante perpetrada ao povo palestiniano, são frequentemente demitidos, falsa e insidiosamente apelidados de antisemitas, e que as retaliações são pesadas. Logo no início dos ataques, o Governo israelita ameaçou que qualquer israelita que protestasse contra os ataques ao povo palestiniano seria punido. A vibrante democracia tão aclamada pelos líderes ocidentais mostra as suas cores.
Mas mesmo sob ameaça e pressão, um grande número de judeus, alguns dos quais descendentes de sobreviventes do holocausto, posicionaram-se contra os massacres contínuos a Gaza. “Nunca mais, outra vez”, dizem. “Não em nosso nome”, afirma uma associação de judeus nova-iorquinos que critica a “desumanização” dos palestinianos e que se manifesta regularmente em defesa do cessar-fogo.
“O genocídio está a ser transmitido em direto nos nossos telemóveis”, acusa a co-fundadora da organização judaico-americana If Not Now, Simone Zimmerman.
A Associação “Rabinos pelo Cessar Fogo”, constituída por mais de 140 representantes judeus, foi uma das muitas associações judaicas a lançar o apelo ao fim das atrocidades. “Os governos dos EUA e de Israel estão a usar a nossa dor para justificar a violência maciça dirigida contra o povo de Gaza”, afirmaram, em comunicado. “Diante desta violência aterrorizante, nós dizemos não!”. Dezenas de associações judaicas juntaram-se no apelo ao fim dos ataques.
“Sou uma sobrevivente do Holocausto. Toda a minha família foi morta
e não é em seu nome que Israel está a matar crianças”
Foram também muitos os sobreviventes do Holocausto que criticaram a política de massacres e desumanização de Israel. Gabor Mate, que sobreviveu ao Holocausto depois de a sua mãe o ter entregue a outra família após o seu nascimento, numa tentativa de o salvar, apelou ao fim da ocupação israelita, ao fim da perseguição dos palestinianos e à devolução das terras palestinianas confiscadas pela ocupação desde 1967. Marione Ingram, de 88 anos, sobrevivente do Holocausto, protesta frequentemente frente à Casa Branca, num apelo a um cessar-fogo em Gaza, é crítica do assalto de Israel e considera que “o que Israel está a fazer não vai acabar com este conflito. Só o vai agravar”. “Sou uma sobrevivente do Holocausto. Toda a minha família foi morta e não é em seu nome que Israel está a matar crianças”, afirmou. Ainda assim, a sobrevivente do Holocausto foi impedida de participar em conferências na Alemanha, a par de muitos críticos de Israel que têm sido proibidos, pelas autoridades alemãs, de expressar a sua opinião em conferências e eventos. O que dizer quando as próprias vítimas do Holocausto são impedidas de realizar conferências na Alemanha?
Também muitos habitantes de Israel criticam o governo israelita pela opressão contínua e por não priorizarem a recuperação de reféns. Seis meses após o ataque do Hamas a Israel, familiares dos detidos em Gaza e os opositores da política do primeiro-ministro apelam ao Governo para que mude de estratégia.
Ocupação sufocante
Todos vociferam “Hamas” sempre que se tenta justificar a morte de milhares de inocentes em Gaza, mas os massacres e a subjugação do povo palestiniano ocorrem há muito antes do Hamas existir. A maioria dos cidadãos europeus desconhece o que foi a Nakba, mas a tragédia em Gaza tem permitido que informação que ficava confinada aos que a procuravam, alcance um maior público. Hoje em dia, encontram-se, nas redes sociais, inclusive, vídeos de soldados israelitas a contarem, entre sorrisos, os massacres que perpetraram, inclusive violações.
A organização israelita de ex-soldados, Breaking the Silence, reúne testemunhos de crimes e abusos que membros das forças israelitas cometem desde há décadas, com relatos de invasões, muitas vezes noturnas, a casas de famílias palestinianas, detenção de crianças e adultos que se tornam “administrativas”, sem indicação de motivo, o que equivale a raptos desumanos que visam quebrar o espírito de um povo que não cede. Muitos prisioneiros não se podem defender precisamente pela ausência de acusação, prova de crime, ou possibilidade de um julgamento justo. Em Julho de 2023, a organização de direitos humanos israelita HaMoked acusava Israel de manter “um recorde de 1128 palestinianos sob detenção administrativa, sem acusações formais ou julgamento, o número mais elevado em duas décadas”.
“A incapacidade da comunidade internacional de responsabilizar as autoridades israelitas pelo apartheid e crimes constantes deu-lhes rédea solta para segregar, controlar e oprimir diariamente os palestinianos, e ajuda a perpetuar a violência. O apartheid é um crime contra a humanidade, e é francamente arrepiante ver os perpetradores escaparem à justiça ano após ano”, afirmou, em Fevereiro do ano passado, a Secretária-Geral da Amnistia Internacional, Agnès Callamard.
Até quando se irá manter a promiscuidade, a conivência dos líderes ocidentais com uma força opressora que transgride a lei internacional? Até quando a hipocrisia descarada, a incongruência e dualidade de critérios dos líderes Europeus – fiéis subservientes da política norte-americana que outorga total impunidade a Israel – não obstante as atrocidades e a evidente ignomínia que durante meses tem desfilado diariamente pelas redes sociais? Os líderes ocidentais mostram, mais uma vez, que a defesa dos direitos humanos e do direito internacional depende de que lado sopra o vento. Assistimos, em direto, ao agora muito transparente colapso moral do Ocidente.