O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio publicou, a 16 de Abril de 2024, um comunicado onde acusa os meios de comunicação social de cumplicidade para com as atrocidades que Israel comete em Gaza. Pode encontrar o texto original da organização norte-americana aqui.
Declaração sobre a narrativa dos meios de comunicação ocidentais relativamente ao genocídio de Israel em Gaza
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio condena o enquadramento enganador da cobertura dos meios de comunicação social ocidentais sobre os bombardeamentos de Israel e o genocídio do povo palestiniano. Desde o início deste último ciclo de ataques a Gaza, em outubro de 2023, a narrativa mais proeminente nos meios de comunicação ocidentais tem sido a de que Israel está a exercer o seu direito à autodefesa. Tem havido pouca análise do que o direito à autodefesa permite e pouca contestação das justificações de Israel para o bombardeamento indiscriminado de zonas civis pelas FDI (Forças de Defesa de Israel) ou da sua responsabilidade pelas crises humanitárias, incluindo fome e escassez de água em todo o enclave.
Embora esta tendência esteja a começar a mudar, devido ao recente assassinato de trabalhadores humanitários internacionais da World Central Kitchen, o Instituto Lemkin considera que a causa desta mudança é indicativa do fracasso mais geral do jornalismo ocidental em fornecer uma imagem exata do que está a acontecer em Israel-Palestina.
Desde 7 de outubro, as principais agências noticiosas têm enquadrado a campanha de Israel apenas como uma reação aos ataques perpetrados pelo Hamas no ano passado, não contextualizando as ações de Israel na sua complexa história de colonização e ocupação militar, bem como na consistente e generalizada desumanização, criminalização e desapropriação dos palestinianos pelo Estado e pela sociedade israelitas. A imprensa ocidental deveria centrar-se com mais exatidão nos bombardeamentos indiscriminados de Israel contra infraestruturas residenciais e civis e nos seus esforços para bloquear a ajuda e reter bens de primeira necessidade, incluindo material médico vital, sem justificações e enquadramentos que parecem ter como objetivo apaziguar as autoridades israelitas.
O perigo de enquadrar repetidamente a campanha israelita como uma resposta legítima de autodefesa aos ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro é duplo: (1) serve para desinformar o leitor de que a causa principal da violência de Israel é o Hamas, e (2) desvia a atenção das dezenas de milhares de vítimas do genocídio em curso.
Embora os acontecimentos de 7 de outubro não possam ser ignorados quando se pretende compreender o que motivou as ações de Israel, muito raramente os meios de comunicação ocidentais apresentam os atuais bombardeamentos como aquilo que são: o mais recente desenvolvimento em décadas de violência física e estrutural contra os palestinianos, que está ligado a um esforço maior para reclamar mais terras palestinianas para a colonização judaica. Mesmo na era das redes sociais, a imprensa tradicional tem um papel importante na formação da opinião pública e, por isso, é fundamental que as reportagens não deixem de abordar os muitos bombardeamentos de Gaza que ocorrem ano após ano, o bloqueio brutal de Gaza há mais de 15 anos e as raízes da luta palestiniana pela autodeterminação. De facto, a narrativa dos meios de comunicação ocidentais ajuda a legitimar a campanha de Israel em Gaza, enquadrando o genocídio como um “conflito” ou uma “guerra” em que lutam dois lados iguais – um com intenções terroristas criminosas e o outro com o nobre objetivo da autodefesa.
Por exemplo, o artigo da BBC de 13 de fevereiro de 2024, “O que é o Hamas e porque está a lutar com Israel em Gaza?”, começa com uma explicação de como a “guerra” começou: quando Israel sofreu “o ataque mais mortífero” da sua história “a partir de Gaza”. O artigo oculta as causas profundas do ataque de 7 de outubro. Em vez disso, posiciona Israel apenas como vítima, o que só serve para justificar a sua perseguição, abuso e ocupação contínuos de civis palestinianos. O leitor é constantemente lembrado de quem é o culpado pela situação atual – uma organização que opera a partir de Gaza e que, aparentemente, está inserida em todas as estruturas do território – com pouca ou nenhuma referência à forma como a situação se desenrolou, ao seu contexto histórico ou aos crimes de guerra e violações dos direitos humanos cometidos em contínuo por Israel.
A retórica dos meios de comunicação social ocidentais não se limita a evitar o contexto histórico, mas vai até ao ponto de retirar ao Estado de Israel a responsabilidade pelas atrocidades que está a cometer contra o povo palestiniano. Em 14 de outubro de 2023, a Reuters publicou um artigo em que afirmava que um dos seus jornalistas tinha sido morto por “mísseis disparados da direção de Israel”, mas não indicava quem poderia ter disparado os mísseis nessa direção. Uma investigação posterior da ONU demonstrou que a equipa da Reuters foi deliberadamente atingida por um tanque israelita, o que constitui uma violação explícita do direito internacional.
Esta forma de eximir a FDI de qualquer culpa não é um caso isolado. De facto, embora os meios de comunicação ocidentais noticiem frequentemente a devastação que os habitantes de Gaza estão a sofrer, é chocante a raridade com que esses relatos identificam Israel como o perpetrador. Embora grande parte dos leitores esteja ciente de que Israel está a orquestrar estes ataques, esta reportagem de voz passiva desvia a atenção do público dos responsáveis. Ao recusar-se a rotular Israel como o agressor, a cobertura não retrata a destruição e perseguição sistemáticas levadas a cabo pela FDI e, ao fazê-lo, obscurece a intenção genocida por detrás das suas ações.
Este tipo de enquadramento reduz o grau em que os Estados serão responsabilizados pelas suas ações. Assegura também que o público continuará a ignorar o direito internacional relevante, cujas violações por parte de Israel foram documentadas por muitas agências de renome.
O efeito desorientador de descrever a vitimização palestiniana sem identificar o seu perseguidor é amplificado pela já referida insistência dos meios de comunicação social em reiterar a centralidade do 7 de outubro neste “conflito”. Centenas de artigos e títulos de jornais transmitem a mensagem de que palestinianos inocentes estão a morrer à fome e a morrer devido a um conflito que, há que sublinhar, começou com os níveis de violência sem precedentes do Hamas contra israelitas há seis meses e é, portanto, da exclusiva responsabilidade do Hamas. Esta mensagem de culpabilidade máxima, com pouca ou nenhuma menção à nação responsável por essa fome e morte, saturou as mentes do mundo ocidental durante meio ano e desvia a atenção da condenação dos genocidas e daqueles que os financiam e fornecem. Amplifica ainda mais a mensagem da FDI à custa das queixas legítimas dos palestinianos e do direito internacional.
Os palestinianos são frequentemente referidos como tendo “morrido”, “sido deslocados” ou “sofrido” com a escassez de alimentos e água. Raramente se diz que foram mortos, removidos à força ou mortos à fome por Israel. Os meios de comunicação ocidentais tendem a apresentar a situação dos cidadãos palestinianos neste quadro: um sofrimento passivo que tem de ser resolvido através da prestação de ajuda e assistência humanitária, com poucas referências consistentes ao que os governos podem ou devem fazer para acabar com o seu sofrimento, obrigando ao fim da campanha de Israel.
Por exemplo, a cobertura mais recente de Gaza centrou-se extensivamente nos projetos dos EUA para enviar ajuda para o enclave e construir um cais para a entrega por mar. Estes artigos da BBC, de março de 2024, dão uma visão geral dos programas de ajuda aérea e marítima liderados pelos EUA, mas pouco informam os leitores sobre o facto de Israel erguer, desde o início, barreiras à ajuda humanitária. Embora a BBC explique as dificuldades em lançar ajuda do céu, não menciona o principal desafio que os grupos de ajuda estão a enfrentar: O bloqueio israelita dos pontos de entrada terrestres em Gaza. As propostas de cais estão na ordem do dia devido ao bloqueio de Israel à Faixa de Gaza, que raramente é citado como a principal barreira a ultrapassar pelas organizações humanitárias. A informação sobre os lançamentos aéreos e o cais flutuante é essencial; no entanto, a cobertura fica incompleta se não sublinhar que tais medidas são necessárias porque Israel se recusa a deixar entrar a ajuda pelas vias convencionais.
Na mesma linha, um artigo de março de 2024 do The Washington Post refere a forma como “perturbações nos postos fronteiriços” têm dificultado as tentativas dos comboios de ajuda, mas não condena Israel por causar essas “perturbações” – uma escolha de palavras que pouco faz para esclarecer as ações sistemáticas e intencionais de Israel para infligir mais sofrimento ao povo palestiniano. Um artigo da NBC da mesma semana afirma que Israel foi “acusado de abrir fogo contra uma multidão de palestinianos”, sem mencionar que os lançamentos aéreos são necessários apenas devido às obstruções israelitas à ajuda. O artigo utiliza a voz passiva em relação aos crimes israelitas, recusando-se sistematicamente a abordar (ou ignorando completamente) as alegações feitas contra Israel por palestinianos que foram corroboradas por investigações.
Em dezembro de 2023, a repórter da CNN Clarissa Ward tornou-se a primeira jornalista a ter acesso a Gaza “desde o início da guerra” e documentou as operações em curso num hospital de campanha em Rafah. A reportagem consegue captar bem as terríveis condições em que os palestinianos se encontravam há sessenta dias na altura das filmagens, mas volta a sofrer da mesma falha: enquadrar a perseguição ativa dos palestinianos como uma condição passiva de sofrimento, para a qual a panaceia é a prestação de ajuda e a melhoria das infraestruturas médicas. Ward entrevista médicos que descrevem a sobrelotação do hospital e a necessidade de improvisar soluções cirúrgicas devido aos recursos limitados, mas o relatório não vai além disso e não enfatiza que Israel bloqueou a entrega de material médico e bombardeou os hospitais ao ponto de estes deixarem de ser utilizáveis.
De forma bastante arrepiante, uma observação final da reportagem é que “Gaza ficará registada como um dos grandes horrores da guerra moderna”. Apesar da descrição honrosa e baseada em factos que Ward faz do sofrimento do povo palestiniano, a conclusão final regressa ao conceito de guerra, legitimando mais uma vez tacitamente os esforços de Israel no paradigma do “tudo ou nada” que escolheu para tentar travar o Hamas.
No entanto, não bastaria que os jornalistas ocidentais enquadrassem os bombardeamentos israelitas de Gaza como uma perseguição sistemática e seletiva aos palestinianos. Na sua cobertura, têm de apontar explicitamente a utilização de linguagem, por parte de altos funcionários israelitas, que sinaliza a intenção genocida das suas ações. Tanto o Le Monde como a CNN noticiaram que o Ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, descreveu o Hamas como “animais” em outubro de 2023, quando anunciou o “cerco total” a Gaza, cortando a eletricidade, os alimentos, a água e o gás ao enclave. É fundamental que estas palavras sejam comunicadas aos leitores de todo o mundo; no entanto, é igualmente importante que o significado do facto de o Ministro da Defesa de um Estado utilizar uma linguagem deste tipo não passe despercebido aos leitores. Embora o Hamas deva ser condenado, reduzi-lo ao nível dos animais por abusos que os soldados da FDI também estão a cometer – e a níveis muito mais elevados – serve de justificação preventiva para o ataque que se seguiu contra todos os habitantes de Gaza. A utilização de uma linguagem desumanizante é, em si mesma, muitas vezes um apelo genocida à eliminação, dando à FDI licença para levar a cabo uma campanha indiscriminada de bombardeamento implacável de casas, hospitais, escolas, universidades e mesquitas. A utilização de linguagem genocida por parte de líderes estatais deve ser explicada nas reportagens ocidentais com a contextualização de que a linguagem desumanizante é frequentemente um apelo ao genocídio. Caso contrário, as reportagens correm o risco de distorcer a interpretação do leitor de que a linguagem desumanizante é legítima neste caso, é legal ou é mera retórica colorida de um único orador. Este enquadramento da linguagem genocida retrata mais uma vez as ações de Israel como proporcionais, legítimas e justas.
As deficiências da imprensa ocidental no que se refere à informação sobre Israel são evidentes e, em resposta, o Instituto Lemkin apela aos meios de comunicação social para que se esforcem por apresentar a campanha israelita em todo o seu contexto histórico, caracterizado mais recentemente pela perseguição implacável e pela desumanização dos palestinianos, que revela uma clara intenção genocida. Os leitores ocidentais não devem interpretar erradamente as ações da FDI como uma retaliação proporcional aos ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro. O direito internacional sobre esta matéria é claro e os meios de comunicação social têm mais do que uma mão-cheia de autoridades jurídicas a que podem recorrer para enquadrar os artigos de forma mais correta e justa.
É imperativo que a comunicação social reflita sobre a dizimação sistemática de palestinianos que está a ocorrer sob o pretexto da segurança nacional israelita. Os jornalistas não podem negligenciar a importância do seu papel no esclarecimento das ações da IDF em Gaza. É crucial que refutem exaustivamente a noção de que Israel está a travar uma “guerra” em que não tem sido tido em conta nem a vida dos civis nem a perspetiva de paz. Onde os chefes de Estado falharam, os meios de comunicação social devem esforçar-se continuamente por manter os genocidas sob controlo, fornecendo informação precisas e fiável e que recuse uma posição “imparcial” em relação a crimes contra a humanidade. Durante dois anos, a cobertura ocidental estabeleceu paralelos entre a campanha de Putin na Ucrânia e a de Hitler em toda a Europa na década de 1930, uma analogia utilizada para ancorar a compreensão do leitor sobre as ações de Putin em relação ao Holocausto, o que, sem dúvida, molda as opiniões dos leitores. Tais analogias, que denotam os riscos de apaziguamento face ao genocídio, não são utilizadas quando se fala de Israel; em consequência, os meios de comunicação social continuam a ser cúmplices ao não abordarem a realidade dos crimes de Israel. O leitor tem sido enganado pelos meios de comunicação social ao longo do cerco, sendo chocantemente poucos os ocidentais que conhecem a sua verdadeira dimensão.
O Instituto Lemkin insta os meios de comunicação social a abandonarem a retórica que protege ativamente Israel dos crimes contra o povo da Palestina e a irem mais longe do que relatar as atrocidades como males necessários, reconhecendo a natureza vinculativa do direito internacional. Em particular, os meios de comunicação social devem dedicar uma atenção significativa a sublinhar os perigos de ministros desumanizarem os seus inimigos, para que não sejam cúmplices na normalização da atrocidade em massa em todo o mundo. Apelamos aos meios de comunicação social ocidentais para que revejam as diretrizes editoriais de modo a garantir que as suas reportagens demonstrem uma apreciação da natureza vinculativa do direito internacional.
Traduzido por DeepL.com